quarta-feira, 30 de abril de 2008

Pedra Filosofal

Foto de John Ellsworth

Coloco vagarosamente o ouvido na pedra. Um sinal estranho parece vir dentro dela. Um eco de outros ecos. As ondas do Tejo sendo abaladas por um adamastor. Gritos de homens num décimo quinto andar em chamas. Tiro o ouvido da pedra: os mesmos sons sofridos, a mesma malha que é usada para acender a lareira. O crepitar da maresia. Aperto a pedra nas mãos, quase ao ponto de a esmagar e, lanço-a para a vertigem do mar. Fiquei com a sensação que ignorara uma grande descoberta, a vida da pedra, a filosofia da pedra. Caminhei na direcção contrária do mar e entrei numa taberna onde as guitarras soam mais do que os marinheiros tenteando. Sentei-me. Junto a uma imitação rasca de pollosk. Ouvia ao longe a voz da pedra chegando com o cheiro a maresia, arrastei o que não conhecia para também eu ser desconhecido e estendi a minha vida na toalha daquela mesa. Suspirei bem alto o nome de uma pedra que tinha despertado a minha feliz existência e finalmente, mais do que nunca, sabia que teria de conseguir apaixonar-me mais tarde ou mais cedo. Descansei o olhar sobre uma mulher sentada ao balcão e descrevi-lhe as fórmulas secretas do amor proveitoso, desse que cai em forma de suor frio pelas costas abaixo e com a vida estendida defronte, pisquei-lhe o olho. Num convite de corpos que se querem, dançamos com os braços tão agarrados que parecia que de quatro só restavam dois assim tão unidos. Quando ao fim das cantigas ela me convidou para subir eu, desiludido com o seu cheiro a ave rara, fugi para a praia e escondi-me na areia. Esperei sentado com a luz do luar a iluminar as águas, esperei que poseidon tivesse a generosidade de me devolver a pedra mas quando a manhã começou a romper a linha do horizonte, já sem esperanças, meti as mãos nos bolsos vazias e virei costas ao salgado do mar. De repente sinto que, enrolada nos dedos dos meus pés estava uma pedrita, não tão grande nem tão bela como a que tinha conhecido antes do baile, mas carregada igualmente de sonhos, os meus sonhos. Com os olhos cobertos de lágrimas corri praia fora com a pedra acarinhada entre as minhas mãos.
Para a Pedra Filosofal
Escrito por Flávio Silver e Margarete
Obrigado. Obrigado meus queridos amigos. Sinto-me agradecida por este texto que me dedicaram. Lindo, como vocês os dois são. Nunca poderei agradecer o suficiente por o terem escrito. Um beijo aos dois. Daqueles do tamanho do universo.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

I Encontro do Luso-poemas

Estava uma manhã solarenga. Pouco antes das dez começaram a chegar os convivas. Tália, Paulo Afonso, António Paiva e Valdenovixis, Margarete, Freudnãomorreu e João Vasco, Pedra Filosofal, Fly e Luís F – primeiros grupos a chegar, seguidos de perto pelo Trabis e pela Cleo.
Com a companhia do Simão, que, gentilmente, nos acompanhou na visita ao Museu do Vinho, fomos visitando as salas e declamando os poemas sobre o vinho que foram enviados à organização. Cabe aqui um agradecimento ao Simão que nos foi explicando, durante a visita, tudo o que queríamos saber sobre o que estava exposto em cada uma das salas.
Com a chegada da Rosa Maria e da Laura Gil e com a fome a apertar, deitamos a mão à massa que, no caso, era mais leitão com batatas fritas, laranjas e pão. Espumante e muita conversa à mistura e o tempo a passar com uma rapidez brutal. Como passa sempre que se está entre amigos. Apesar de muitos de nós só nos termos visto pessoalmente no sábado, o sentimento geral é que se tratava de um reencontro de amigos. Como disse o Val, parecia que nos conhecíamos todos há anos.
A Laurinda, depois de muito se esforçar, lá nos entregou mais dois convivas. O José Torres e o Flávio Silver. E se a conversa estava animada, animada continuou. Sempre em torno do que nos une, o luso-poemas.
Logo que o Vereador da Cultura da Câmara Municipal da Anadia, Dr Jorge São José chegou, começou a parte formal do encontro. Fomos para o auditório do museu onde o Dr Jorge São José agradeceu a nossa presença e nos abriu a porta da Anadia para mais encontros destes. Apesar dos agradecimentos feitos pessoalmente na altura, quero aproveitar esta oportunidade para agradecer, de novo, ao Vereador, à Câmara e ao Museu por nos ter permitido passar um dia excelente.
Já estávamos no auditório há um bocadito, quando a Carolina chegou para compor o ramalhete. Coube então a vez a cada um de nós de falar sobre o significado do site e da escrita na vida de cada um. A conversa foi sendo intervalada pelas fantásticas actuações do Freudnãomorreu e do João Vasco. O Freud cantou e encantou toda a sala, enquanto o João Vasco tocou como poucos. Foram a surpresa do evento e ficou, sem dúvida, a vontade de os ouvir mais. Tivemos ainda direito a ver um poeta deitado no chão a ler um texto e a visitar o site enquanto conversamos sobre ele.
Com muita pena tinha chegado a hora do grupo se começar a separar porque a Pedra Filosofal tinha um compromisso com a filha nessa noite, pelo que ela, o Luís F, a Laura Gil e a Fly saíram nessa altura, mas não sem antes se tirar a foto de grupo que se mostra nesta “reportagem”.
Logo a seguir à foto o Flávio, depois de muito pedirem, deu o ar da sua graça e tocou (e claro que encantou).
Depois de terminadas as actividades no Museu do Vinho, e para não destoar do resto do dia, o grupo seguiu para as Caves Castelar onde lhes foi proporcionado uma visita guiada e um jantar convívio com grande animação à mistura. Conversa em dia e barriguinha cheia, ainda houve tempo para um café. Terminado o café começou a viagem de regresso e todos chegaram bem ao seu destino.
Fiz esta história do evento para ser colocada no Fórum do site, em http://www.luso-poemas.net/. Quis trazer-vos esta espécie de reportagem porque devo ao Luso e aos seus poetas, quer a existência deste blog quer as minhas aventuras na escrita.
Foi um dia memorável. Tive a felicidade de (re)encontrar pessoas com quem falo todos os dias, pessoas que admiro e com quem fui criando laços de amizade. Foi também muito agradável estar com outras pessoas com quem pouco ou nada falava e ver que, afinal, são tão simpáticas como aquelas com quem falo habitualmente. Confesso-vos que mudei o meu pensamento acerca de algumas e de outras só confirmei o que já suspeitava. Foi com muita pena que vos deixei a todos em Anadia e que regressei ao Barreiro. Val, tens razão. Soube a pouco. A muito pouco. Impõem-se mais encontros destes, mesmo que sejam sem razão aparente, porque a amizade que se viveu na Anadia no dia 26 não precisa de razão alguma. Convido-vos a visitar os posts de quem viveu este dia. E deixo o repto a todos os que estiveram presentes e que ainda não escreveram a sua versão do dia a fazê-lo.
Aproveito ainda esta ocasião para fazer um pedido. A todos os que tiraram fotos, enviem-nas, por mail, aos outros presentes. Troquemos fotos de modo a ficarmos todos com a colecção completa.
Termino com uma pergunta – quando é que nos voltamos a encontrar?

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Aprendi

Foto de Brice Glende



Aprendi que eu não posso exigir o amor de ninguém, apenas posso dar boas razões para que gostem de mim e ter paciência, para que a vida faça o resto.
Aprendi que não importa o quanto certas coisas sejam importantes para mim, há pessoas que não ligam... e eu jamais conseguirei convencê-las.
Aprendi que posso passar anos construindo uma verdade e destruí-la em apenas alguns segundos. Que posso usar meu charme apenas por quinze minutos porque, depois disso, preciso saber do que estou a falar.
Eu aprendi... que posso fazer algo num minuto e ter que responder por isso o resto da vida. Que por mais que se corte um pão em fatias, esse pão continua tendo duas faces, e o mesmo vale para tudo o que cortamos em nosso caminho.
Aprendi... que vai demorar muito para me transformar na pessoa que quero ser, e devo ter paciência. Mas aprendi também que posso ir para além dos limites que eu próprio coloquei.
Aprendi que preciso escolher entre controlar meus pensamentos ou ser controlado por eles. Que heróis são pessoas que fazem o que acham que devem fazer naquele momento, independentemente do medo que sentem.
Aprendi que perdoar exige muita prática. Que há muita gente que gosta de mim, mas não consegue expressar isso.
Aprendi... que nos momentos mais difíceis a ajuda veio justamente daquela pessoa que eu achava que iria tentar piorar as coisas.
Aprendi que posso ficar furioso, tenho direito de me irritar, mas não tenho o direito de ser cruel. Que jamais posso dizer a uma criança que seus sonhos são impossíveis, porque seria uma tragédia para o mundo se eu conseguisse convencê-la disso.
Eu aprendi que o meu melhor amigo me vai magoar de vez em quando, que eu tenho que me acostumar com isso. Que não é o suficiente ser perdoado pelos outros, eu preciso me perdoar primeiro.
Aprendi que, não importa o quanto o meu coração esteja sofrendo, o mundo não vai parar por causa disso.
Eu aprendi... que as circunstâncias de minha infância são responsáveis pelo que eu sou, mas não pelas escolhas que eu faço enquanto adulto.
Aprendi que, numa briga, eu preciso escolher de que lado estou, mesmo quando não quero me envolver. Que, quando duas pessoas discutem, não significa que elas se odeiem; e quando duas pessoas não discutem não significa que elas se amem.
Aprendi que por mais que eu queira proteger as pessoas que amo, elas se vão magoar e eu também. Isso faz parte da vida.
Aprendi que a minha existência pode mudar para sempre, em poucas horas, por causa de pessoas que nunca vi antes.
Aprendi também que diplomas na parede não me fazem mais respeitável ou mais sábio.
Aprendi que as palavras de amor perdem o sentido, quando usadas sem critério. E que amigos não são apenas para guardar no fundo do peito, mas para mostrar que são amigos.
Aprendi que certas pessoas vão embora da nossa vida de qualquer maneira, mesmo que desejemos retê-las para sempre.
Aprendi, afinal, que é difícil traçar uma linha entre ser gentil, não ferir as pessoas, e saber lutar pelas coisas em que acredito.

Texto atribuído a William Shakespeare. Oxalá todos aprendam mais um pouco com ele.

domingo, 20 de abril de 2008

Tu és a minha estrela

Foto de Paul Glantzman

Embalo nas vagas,
Que alimentam o meu corpo…
E transporto em mim,
Os segredos escondidos no tempo.
No refúgio dos sentimentos,
Que despertam na imensidão…
Apelos que deslizam em ecos,
Erguidos nos gestos do coração.
Resvalo suavemente no teu dorso,
Na nudez que partilhamos no infinito,
Palavras de desejos proibidos…
De tantos sonhos construídos.
Na crista da espuma de algodão,
Feita de ondas que alimentam o meu peito,
Escorrem na praia deserta…
Os filamentos escritos na areia,
Perpetuam palavras do poeta.
Acendem à noite as estrelas no céu,
Diamantes que pintam a luz que irradia,
Nada será hoje como dantes…
Porque em mim uma outra estrela brilha.
Apenas sei que no silêncio que me percorre,
No abraço que te dou em meu manto azul,
O perfume do teu ser que embalo,
Refúgio que acolhes no meu corpo.
Sopra o vento …
Sintonia do pensamento que vagueia no ar,
Nada mais importa,
Nada mais…
Eu sou o mar…
E tu… a minha estrela marinha.

um excelente poema de Luís F., quiçá um dos melhores dele.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Solidariedade e compaixão

Foto de Per Johansson



Gabriela Mistral disse que a fragilidade é um dos nossos maiores dons. É através dela que nos tornamos conscientes de nossa finitude e da transitoriedade da vida. Contudo, temos um outro dom: o dom do amor ao próximo e este amor pode ser definido em duas palavras: solidariedade e compaixão.
Estes dois sentimentos nos devolvem nossa humanidade perdida (ou não) num mundo dito exclusivo de interesses terrenos e alheio à dor do outro. Acima de tudo, a solidariedade e a compaixão nos colocam perto desta Força, que nos interliga e nos aproxima à medida que podemos ver que a dor do outro não é menor que a nossa, à medida que nos identificamos com o sofrimento do próximo e de alguma forma, desejamos minimizá-lo. Isto chama-se amor consciente e desinteressado, isto é vontade de fazer o bem.
Quando somos solidários e compassivos, a dor do outro é a nossa. Nos indignamos se o próximo se indignar, sofremos se ele sofrer, tentamos ser alento e damos a mão, o ombro amigo, palavras consoladoras e até choramos juntos.
São nos momentos difíceis que encontramos estas almas e elas nos aparecem sob diversas formas: pode ser aquele olhar que se condói por ti, podem ser pessoas que se indignam contigo, ou mesmo que dizem “ vou orar por ti” e ainda há aquelas que abrem as bolsas e te dão fotos de santos para te ajudar e proteger.
Sim, estes anjos sem asas estão por ai, existem de verdade e eu os encontrei nesta semana de desafios e luta.
Nunca acreditei na total desumanização do ser humano que, grotescamente, massacra e é massacrado pelo sistema vigente. Nunca acreditei num mundo esmagado pela estupidez e pela hipocrisia. Nunca pensei como Camus que disse ser a existência humana algo ininteligível, que via o homem como um ser que se afundava em uma rotina confortável que lhe dava a ilusão de ter algum valor e, se enganava de que não estava só. E, agora, acredito menos ainda. A solidariedade e a compaixão são as pontes que nos libertam da solidão.
Tenho esperança na força renovadora do bem, tenho esperanças no amor, tenho esperanças no ser humano e na sua incrível capacidade de atos grandiosos e sentimentos nobres.
Gabriela Mistral está tão certa. Sim, somos seres frágeis, mas somos fortes ainda em nosso poder de compartilhar os nossos corações e de amar o próximo como a nós mesmos.

Karla Bardanza
Dedico este texto às Poetisas (Ângela Lugo, Amora, Pedra Filosofal, Betha M.Costa, Rosamaria, Mel de Carvalho, Vera Silva, Cleo, Gaivota, Alcina) e aos Poetas (Luís F. e Frank Mike- meus parceiros e amigos, JoséTorres, HorrorisCausa, Valdevinoxis, Gilberto,Henrique Pedro) e aos leitores/as do Luso-Poemas que junto comigo se indignaram e, caridosamente, deram-me alento através de suas palavras. Dedico também a todas as pessoas que encontrei esta semana: médicos/as (Dra Sivana e Dr Jeferson), enfermeiros/as, pacientes como eu, taxistas, anônimos, e também as minhas amigas e amigos, pessoas que enviaram-me e.mails e suas doces palavras, todos anjos sem asas. Obrigada por torcer por mim e minha filha que ainda esta convalescendo, mas bem melhor. Deixo aqui apenas um pedido:
Se você mora no Rio de Janeiro, DOE SANGUE. Para cada pessoa com dengue hemorrágica são necessárias 7 bolsas de sangue. Faça sua parte. Doe sua Luz.

A Karla passou, há pouco tempo, por uma fase menos boa. A sua filha esteve internada no hospital, no Rio de Janeiro, com Dengue Hemorrágica. Felizmente já está recuperada. Pedi-lhe este texto (entre tantos bem lindos que ela tem) pela solidariedade que ela recebeu dos amigos e conhecidos, e que demonstra que, afinal, ainda há uma esperança para a humanidade.
Conheçam mais da Karla e dos seus lindos textos em
http://kbardanza.zip.net/

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Encontrei um tesouro

Foto de Marina Segura


Ao longo da minha vida, e tal como todos nós, já passei por bons e por maus momentos. Houve uma altura, num mau momento bastante prolongado, que achei que o mundo ia desabar em cima de mim. No período anterior e, quase exclusivamente por minha culpa, tinha perdido praticamente todos os amigos que tinha e, os poucos que restavam pouca paciência tinham para o meu mau humor. Fechei-me que nem uma concha e mal de quem a tentasse penetrar. Sairia, com certeza, ferido dessa tentativa. Os meus dias eram passados entre a faculdade, o trabalho e a minha casa. Não queria estar com ninguém, falar só mesmo por obrigação e conviver então era uma tortura.
Quem me conhece sabe que gosto de falar (até demais, ás vezes), que adoro estar com os amigos e que conviver com outras pessoas é quase que a minha segunda pele. Nesta fase era o oposto de mim.
Foi uma fase complicada. O meu mau estar levava-me a não ser eu nas minhas atitudes. E o facto de não conseguir ser eu nas minhas atitudes levava-me a estar mal. Um círculo vicioso, do qual não conseguia sair. Não interessa agora saber o motivo. Ficou perdido no tempo. Fugiu-me.
Foi na faculdade que encontrei um tesouro. Um não, vários. Pessoas que me conheceram nessa altura má e que, apesar de me conhecerem há pouco tempo, não abriram mão de mim. Tiveram a força suficiente para, aos poucos, começarem a penetrar no mundo fechado em que eu vivia. Forçaram-me a sair com eles. A conviver, a estar com pessoas. Nos primeiros tempos eu tentava fugir. Não queria ir. Arranjava desculpas esfarrapadas para não ir. Mas não desistiram. Aos poucos deixei de ter desculpas e comecei a ter de ir. E que bem que me soube voltar a estar com pessoas – mesmo que, nos primeiros tempos, não o assumisse.
Graças a esses tesouros que encontrei, a esses amigos que não desistiram de mim, voltei a sorrir, voltei a rir e voltei a encarar a vida com optimismo – em suma, voltei a ser eu. Com eles reaprendi que a amizade é fundamental e que não devemos desistir dos amigos – mesmo que eles queiram que o façamos.
Quando os nossos amigos cedem às pressões, quando renunciam de si, dos outros, dos seus sonhos, a verdadeira amizade está em ajudá-los a reencontrarem-se.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Amigo Aprendiz

Foto de Thaid Chaidar

Quero ser teu amigo,
Nem demais e nem de menos...
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te como próximo, sem medida...
E ficar sempre em tua vida
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade,
Sem jamais te sufocar,
Sem forçar a tua vontade.
Sem falar quando for a hora de calar.
E sem calar quando for a hora de falar.
Nem ausente nem presente por demais...
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amigo, mas confesso:
É tão difícil aprender...
Por isso, eu te peço paciência.
Vou encher este teu rosto
De alegrias, lembranças...
Dê-me tempo
De acertar nossas distâncias!

Poema de Fernando Pessoa que dedico aos meus amigos

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Saudade

Foto de E J Clifford

Diz a lenda que esta palavra surgiu na época dos Descobrimentos para definir a solidão dos portugueses numa terra estranha, longe dos seus entes queridos.
Pode-se descrever como uma melancolia causada pela lembrança; a mágoa que se sente pela ausência ou desaparecimento de pessoas, coisas, estados ou acções, um desejo de rever ou possuir um bem especial.
Existe ainda uma outra lenda que diz que, por ser uma única palavra a definir uma mistura de sentimentos, é intraduzível. Aliás, para confirmar esta lenda, foi feita recentemente uma pesquisa entre tradutores britânicos que a considerou como a sétima mais difícil de traduzir.
No entanto há excepções a esta regra. Na língua romena, a palavra "dor” (a dor portuguesa traduz-se por “durere”). Em galego existem várias variantes, sendo que também é usada a palavra saudade (as variantes são soidade, morriña ou morrinha, estas duas últimas com um significado parcialmente coincidente). Em crioulo cabo-verdiano existe a palavra sodade ou sodadi.
Sabem, eu acho que a saudade não se define, sente-se. É saudade o que sinto quando me lembro do meu avô, que morreu há cinco anos e que me deixou um vazio no coração que ninguém consegue preencher. É saudade que sinto quando olho para o filho dum amigo que morreu de acidente de mota há seis anos… ou quando vou a casa da minha sogra e o meu sogro não está lá para nos receber.
Saudade é quando me lembro de amigos com quem não falo há bastante tempo, quando determinados cheiros me trazem à memória as minhas recordações de infância. Como é que posso definir, senão com a palavra saudade, o que sinto quando me lembro do tempo em que estava nos escuteiros, das nossas actividades, dos sábados que passávamos juntos e onde nasceram amizades que ainda hoje se mantêm?
Todos sentimos saudades de quando brincávamos na rua e os nossos pais podiam estar descansados que o pior que nos podia acontecer era magoar um joelho ou partir a cabeça.
E não será saudade o que um pai sente porque só pode estar com a filha que ama em alguns fins-de-semana, porque ela vive com a mãe noutra cidade?
E como poderemos definir o que sente uma professora quando entra na sala de aula e não encontra o aluno que lhe morreu nos braços?
Os meus filhos, ainda pequenos, já me perguntam o que é a saudade… Ouviram esta palavra e quiseram que eu a explicasse. Não consegui. Sei que um dia eles vão sentir saudades, e ai sim, vão perceber o que é. Mesmo que não a definam.

sábado, 12 de abril de 2008

Suicídio

Foto de Madalina Iordache

Como quase sempre, hoje, na minha viagem de barco para Lisboa ia a dormitar. Mais ou menos a meio da viagem, e sem saber muito bem porquê abri os olhos e vi um arco-íris lindo. Sabem, daqueles em que as cores estão bem definidas, e que quase podemos ver o pote de ouro no fim de cada lado. E pensei para mim – hoje vou ter um dia bom. E até comentei com um amigo e com o meu colega o que tinha visto e o quanto eu gostava de ver o arco-íris – acho que até disse que era como as crianças, fico encantada quando os vejo.
Talvez pela associação do arco-íris à lenda (ou realidade?) da arca de Noé. Lembram-se? Depois de terminado o dilúvio, surge no céu um arco-íris como sinal de que nunca mais Deus destruiria a terra. Sinto-me sempre reconfortada quando os vejo. O dia corre bem, de certeza...
Certo é que até foi um dia como os outros. Nada de extraordinariamente positivo aconteceu. Até aqui tudo bem, também não esperava ganhar o euromilhões lá porque tinha visto o arco-íris (bem, até porque, para isso era preciso que tivesse jogado).
Ao fim do dia, e tal como estava agendada, lá fui a uma reunião. No decorrer da reunião o senhor com quem estava reunida recebeu uma chamada. Acabou por atender (pedindo-me as devidas desculpas) e... bem, aqui o meu dia descambou. Porque o telefonema era para avisar o senhor que tinham acabado de encontrar o pai dele enforcado na cave. Como podem imaginar a reunião acabou de imediato... e eu, que até julgava que o dia me ia correr bem, acabei-o com uma enorme sensação de vazio.
O que levará uma pessoa a cometer suicídio? Será cobardia? Será que a pessoa se sente incapaz de ultrapassar os problemas que tem ou pensa ter? Será que há alguma razão válida para cometer suicídio? Que será tão grave que leve uma pessoa a quer deixar de estar com os seus entes queridos, deixar de sentir o vento na cara, o cheiro das flores, ouvir o riso duma criança? Não será cobardia não enfrentar os problemas, não os tentar resolver?
Será coragem? Não será preciso coragem para tomar uma atitude destas? Saber o exacto momento da morte, preparar a morte e, quiçá, vê-la chegar? Não será preciso coragem para meter uma corda pendurada no tecto e depois subir a um banco, meter o pescoço lá dentro e dar um pontapé no banco? Atirar-se duma ponte ou para a frente dum comboio?
Acima de tudo acho que são pessoas desesperadas. Que acham que a vida já lhes deu tudo e que nada mais esperam senão sofrimento. Que não tem apoio suficiente das suas famílias (ou que acham que não têm). Que são doentes, na maior parte das vezes, e que, por descuido e falta de tempo, os que lhes são próximos não se apercebem...
São inúmeras as razões para o suicídio. Para mim, nenhuma é válida. Amo a vida tal qual ela é. Cheia de espinhos. Porque são os momentos mais espinhosos que me levam a saber apreciar os momentos mais belos. Não fora ter problemas, como saberia eu o que é não os ter? Gosto de sentir a chuva, de ter frio, de cheirar as flores, de brincar com os meus filhos, de estar com os amigos, de ter fome e de a saciar a seguir... tudo, os bons e os maus momentos. Gosto de todos os momentos. Gosto de viver e de me sentir viva.
(escrito a 11/04/2008)

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Esta noite meu pai matou-me



Foto de Stefano Bandini

O meu nome é "Sara"
Tenho 3 anos
Os meus olhos estão inchados,
Não consigo ver.

Eu devo ser estúpida,
Eu devo ser má,
O que mais poderia pôr o meu pai em tal estado?

Eu gostaria de ser melhor,
Gostaria de ser menos feia.
Então, talvez a minha mãe me viesse sempre dar miminhos.

Eu não posso falar,
Eu não posso fazer asneiras,
Senão fico trancada todo o dia.

Quando eu acordo estou sozinha,
A casa está escura,
Os meus pais não estão em casa.

Quando a minha mãe chega,
Eu tento ser amável,
Senão eu talvez levaria
Uma chicotada à noite.

Não faças barulho!
Acabo de ouvir um carro,
O meu pai chega do bar do Carlos.

Ouço-o dizer palavrões.
Ele chama-me.
Eu aperto-me contra o muro.

Tento-me esconder dos seus olhos demoníacos.
Tenho tanto medo agora,
Começo a chorar.

Ele encontra-me a chorar,
Ele atira-me com palavras más,
Ele diz que a culpa é minha, que ele sofra no trabalho.

Ele esbofeteia-me e bate-me,
E berra comigo ainda mais,
Eu liberto-me finalmente e corro até à porta.

Ele já a trancou.
Eu enrolo-me toda em bola,
Ele agarra em mim e lança-me contra o muro.

Eu caio no chão com os meus ossos quase partidos,
E o meu dia contínua com horríveis palavras...

"Eu lamento muito!", eu grito
Mas já é tarde de mais
O seu rosto tornou-se num ódio inimaginável.

O mal e as feridas mais e mais,
"Meu Deus por favor, tenha piedade!
Faz com que isto acabe por favor!"
E finalmente ele pára, e vai para a porta,

Enquanto eu fico deitada,
Imóvel no chão.

O meu nome é "Sara"
Tenho 3 anos,
Esta noite o meu pai *matou-me*.


Este poema é de autor desconhecido. Gostaria que a dor que relata fosse também desconhecida das crianças que morrem diariamente vítimas de violência. E quantas vezes vítimas dos próprios progenitores que nada fazem para as proteger.
No link
http://www.ad-awards.com/commercials/selection/institute_for_support_of_abused_children/commercials-218.html podem ver um filme sobre este tema que nunca passou na televisão e que é mais um alerta. E como diz um amigo meu, a realidade dói. E dói ainda mais porque há quem vire a cara, há quem saiba destas situações e nada faz.
Os animais não tratam as suas crias como alguns seres humanos o fazem. Para a Sara do poema, teria sido melhor ter um animal como pai. Se calhar estaria viva e os seus olhos mostrariam alegria em vez de estarem inchados.
Fica mais um alerta. Se calhar inócuo.

domingo, 6 de abril de 2008

Um recado

Foto de Chung Chan

Só as estrelas me tocam
(escusas de tentar...)
Nas vagas do tempo que está para vir,
(ainda assim é preciso esperar...)
E na preciosidade das palavras secretas
(vejo o teu olhar escondido...)
Escondo-me e apago-me
(e também me escondo... fujo)
Sem mais gestos clandestinos
(nem desejos insurgidos)
E sem a avidez dos sentidos.
(desisto… de querer!)
O sal queima-me a pele
(de uma forma subtil)
E as letras a boca quente.
(alimentam-me o Ser.)
E lanço-me ao vazio vago da escuridão,
(na ânsia e na procura,)
Num sonho e num desejo,
(sem limitações do acessos)
Envoltos em liliáceas
(visto os pecados)
Com que me cubro
(e danço em fantasias)
E espero...
(melodias do acto)
Espero-te...
(achego…)

dueto entre Vera Silva e Paulo Afonso.
Sem dúvida, dois autores excelentes que mostram, neste poema, mais uma vez a sua qualidade. Um beijo aos dois

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Poema de amor para uma mulher

Foto de Janusz Taras


Na janela aberta do teu peito
poisam os pássaros com fulgor
Em rubros lençóis de cama
a saudade pegou fogo à dor
essa que vive no leito
de quem sofre e ama

Vestiste-te de orvalho fino
cumprimentaste o dia-flor
No teu ventre de Mel puro
zumbiam as abelhas sem tino
à procura da memória do amor

Nomeaste as coisas para futuro
Terra, ar, fogo e água...
E do outro lado deste mundo
a saudade deixou de ser mágoa
a tem-te agora em meu peito fundo

Encontrei-te num canteiro
quando a tarde madura tombou
fui apicultor e jardineiro
de um beijo que alguém roubou


Este poema foi escrito pelo José Torres. Devem haver poucos autores como ele, uma vez que tanto escreve um fado em coisa de minutos, inspirado pela conversa do momento, crónicas, romances, contos, prosa, poesia….
É, seguramente, um dos autores de quem não perco de vista um único trabalho. E acreditem, deu-me uma trabalheira escolher o texto que aqui haveria de por. Escolhi este porque, segundo a explicação do José, é um poema de amor dedicado a todas as mulheres.
Visitem o blogue http://www.o-ente-do-ser.blogspot.com/ e vão conhecer mais sobre o José Torres e a sua escrita

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Sentir

Foto de Periwinkle Rose

Sinto-me… feliz! Quando ouço o riso dos meus filhos, quando cheiro uma flor, quando ouço uma música especial…
Sinto-me… impotente! Quando vejo crianças a serem maltratadas, quando vejo pessoas a passar fome, quando vejo injustiças…
Sinto-me… a viajar! Quando leio uma boa história, quando olho para um quadro, quando vejo um filme…
Sinto-me… com raiva! Por ver mulheres a serem tratadas como objectos de decoração, a serem mutiladas, espancadas, e o mundo olha sem nada fazer…
Sinto-me… alegre! Quando estou com a família ou os amigos, quando me sento numa esplanada sem pressas…
Sinto-me… amargurada! Por haver medo em assumir o que se gosta, quando o que se gosta sai fora do que é aceite em sociedade, por haverem pessoas conflituosas…
Sinto-me… satisfeita! Quando acordo de manhã, quando vou trabalhar porque faço o que gosto… e gosto do que faço…
Sinto-me… triste! Por haver pessoas que não se sabem rir, que querem ser conhecidas a todo o custo, que querem chegar ao topo sem olhar aos meios para lá chegar, que não sabem partilhar…
Sinto-me… curiosa! Porque não conheço a cara e a voz de alguns amigos, uns porque vivem demasiado longe, outros que estão perto mas que nunca nos encontramos…
Sinto-me… afortunada! Por ter filhos, família, amigos que fazem com que a minha vida valha a pena…
Sinto-me… bem! Quando recebo cartas, e-mails, sms’s dos amigos, porque sei que se lembram de mim, como eu me lembro deles…
Sinto-me… preocupada! Quando as pessoas de quem gosto viajam, até ao momento em que sei que chegaram bem...
Sinto-me… útil! Quando ajudo os amigos, quando não os deixo desistir do que querem, quando os acompanho…
Sinto-me… gorda! Quando a roupa não me serve de manhã, quando me apetece comer um bolo de chocolate…
Sinto-me… eu! Esta sou eu. Sem mais. Sem menos. Uma pessoa como as outras, com defeitos, com virtudes, com coisas boas e com coisas más. Que se ri dos outros, porque primeiro se ri de si própria. Que assume o que pensa, sem medo de ser criticada, que odeia conflitos… eu. Apenas eu! E só eu! Entre a capa que me esconde e a verdade que mostra... neste meu sentir!

terça-feira, 1 de abril de 2008

Génesis

Foto de Janusz Taras


Aqui
onde quase todas as coisas adormecem
sem nunca terem sentido a força de teus braços
criei pastosas raízes
à terra
à rocha
ao íngreme acutilante da fraga
aos mais ínfimos espaços.

Sento-me na poeira fina libertada pó d’argila
p’lo talhe penetrante da charrua.
Mimo o corpo em residência primeira
na seiva d’erva azeda
póstuma sementeira golpeada p’la enxada.
Deixo que o cheiro doce da madrugada me possua
cada poro
cada camada dérmica
cada película tenra de alma
cada língua d’água libertada gota a gota em deriva.

Há aqui um tempo calmo, amado,
um tempo leve
espessado na frescura voluptuosa de um tule –
tão leve, tão táctil, tão brando -,
um afago azul inverosímil de tão terno
e o registo antigo
das tuas mãos depostas na concha púbica do prazer
a fiar
a cerzir
a tecer
em tear líquido de linho
um orgasmo
um gemido do mais divino bem-querer.

Aqui
onde quase todas as coisas adormecem
sem nunca terem sentido a força anímica de teus braços
há o encantamento reconhecido se provindo do silêncio genésico e uterino.


Este poema foi escrito pela Mel Carvalho, uma boa amiga, uma excelente pessoa de quem gosto bastante.
A Mel é muito versátil, tanto escreve poesia (como podem verificar no blogue
http://noitedemel.blogs.sapo.pt/) como prosa (no blogue http://noitedemel.blogspot.com/). E sempre com qualidade.