Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão - príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?
Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
Poema em linha recta
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Mais uma excelente pérola que nos trazes.
ResponderEliminarBjs
Luis
Já conhecia, porque acompanho Fernando Pessoa. Mas gosto muito o que respeita a Alberto Caeiro.
ResponderEliminarBeijinhos
"... Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho..."
É esta loucura do Mestre que me entontece e me deixa, profundamente, aquietada.
ResponderEliminarE, nas suas últimas horas, deram-lhe os óculos...a seu pedido. E há lá coisa mais simples?
Um beijo de parabéns, pela belíssima escolha***
É dificil ler um heterónimo de Fernando Pessoa e não nos identificarmos com ele. Por mais que existam, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro são fascinantes. cada um com as suas próprias características.
ResponderEliminarExcelente escolha.
Perfeito.
http://desabafos-solitarios.blogspot.com/