segunda-feira, 31 de março de 2008

Sintonia

Foto de Andrey & EKatrina Muzikin

Caem as letras, uma a uma...
Cai a nossa roupa, espalha-se pelo chão,
Rebolam os versos nos nossos corpos
Em alegre sintonia.
Sinto-te na minha carne, quente...
Entras devagar, dentro de mim
E sacias-me a fome e o querer.

Transpiras-me,
Inspiras-me!

Realizo-te as fantasias mais loucas
Numa entrega indiscreta,
E quente, ardente...
Tomo-te e imaginas-me tua.
Inventamos caminhos indecentes
Para percorrermos juntos
E chegarmos, loucamente, ao fim

Inspiras-me!
Transpiras-me!

Poema de Vera Silva

sábado, 29 de março de 2008

Não foi essa a educação que dei à minha filha

Foto de Salih Güler

Esta frase foi dita por uma mãe surpreendida com a atitude que a filha teve numa sala de aula.
Infelizmente hoje em dia muitos são os pais que desconhecem as atitudes dos filhos (para não dizer que não conhecem mesmo os filhos que tem).
Muitas das atitudes que os filhos têm reflectem a educação, ou a falta dela, que os pais lhes dão em casa. Não serão todas, é certo. Os pais não podem ser culpabilizados por tudo, mas em muita coisa têm culpa.
Gostava de partilhar convosco algumas situações a que já assisti e que me parecem passíveis de deseducar as crianças. Mais uma vez, trata-se da minha opinião pessoal, e posso, obviamente, estar errada.
Uma criança de 5 anos, no hipermercado, andava atrás dos pais: "quero isto, quero aquilo, quero aqueloutro". E a tudo os pais acediam em dar-lhe. Chocolates, brinquedos, gomas, bebidas... A razão – "se não lhe damos, depois ele faz uma birra". E eu pergunto. Que adulto vai ser esta criança a quem lhe foram feitas todas as vontades em criança? Quando crescer esta criança vai estar habituada a ter tudo o que quer. E nós, adultos, já aprendemos que, na vida, nem sempre temos tudo o que queremos, e temos que tomar opções.
No autocarro, um miúdo com cerca de 6 anos, gritou, chamou nomes e bateu à mãe porque ela não o deixou ir em pé. A mãe... riu-se e disse, para quem estava à volta – "não tenho mão nele". Não tem mão numa criança de 6 anos? Então... e quando crescer? Será que esta mãe acha que o miúdo vai aprender sozinho a respeitar os mais velhos?
Uma miúda de 14 anos queixou-se ao pai que a professora não a deixou atender o telemóvel no decorrer da aula. E o pai, em vez de dizer que, enquanto decorre uma aula não deve atender o telemóvel (nem sequer deixar que toque, por respeito aos professores e aos colegas), mandou um recado à professora a avisar que, da próxima vez, lhe batia se a filha não pudesse atender o telefone.
Um amigo meu é professor. A semana passada levou um estalo dum pai, porque o filho tinha chegado a casa triste porque a nota no teste não tinha sido a que estava à espera. Palavras para quê? Que tal recomendar ao filho que se aplique mais em vez de bater ao professor? E ainda por cima à frente do filho.
E todos estes pais acham que estão a dar a melhor educação aos seus filhos. E depois não percebem quando os filhos faltam ao respeito aos mais velhos – porque não foi esta a educação que lhe dei.
Não me considero perfeita, nem sequer uma mãe perfeita. Amo os meus filhos mais do que tudo na vida. Fiz, faço e farei tudo por eles. Se calhar já falhei, estou a falhar ou irei falhar no futuro como mãe e como educadora. Mas não me passa pela cabeça dar tudo o que eles querem. Não quero que lhes falte nada. E incluo, no que não lhes deve faltar, o respeito pelos professores, o respeito pelos outros, a contenção nas compras, assumir as suas responsabilidades e a resolução de conflitos.
Nunca é cedo demais para as crianças aprenderem estes princípios. Ao invés, quanto mais tarde começam a aprender, mais difícil é a aprendizagem. E cabe aos pais, acima de tudo aos pais, ensinar os seus filhos. Não podemos imputar esta responsabilidade aos professores, aos outros. Somos nós, pais, que temos de o fazer. Senão teremos tanta ou mais culpa que os filhos nas atitudes que eles tomam.
Deixo-vos uma última questão. Para quando a preocupação de saberemos e prepararmos os nossos, a viver em sociedade?

quarta-feira, 26 de março de 2008

És tudo o que é secreto em mim

Foto de Hugo Romano

Há muitas estrelas que aceito acordar
Num céu escuro
Abandonado pela alma…

Há tanto tempo que rejeito
A sua procura
Quando me sentava na tua parede azul...

Acendo a luz da noite
E deixo-me ficar ali, à tua espera
Calo os meus segredos nas caixas dos teus
E vejo a noite seguir em viagem distante
Para além do teu corpo
Alinhado em figura de estilo
A passar encostado ao tempo...

Ali...
Descubro beijos em avulso
Enrolados em lágrimas
Como água de um rio

…tudo o que é secreto em mim...

Poema de Manuela Fonseca

sábado, 22 de março de 2008

A escola da Margarida

Foto de Ian Cameron

Na escola da Margarida há espaços lindos para os meninos e as meninas brincarem, e as salas de aulas são grandes.
Os professores são os amigos crescidos que se preocupam e que ensinam coisas importantes para a vida futura.
Todos os dias as amizades florescem na Escola da Margarida.
Todos os dias as crianças estão felizes e assim aprendem a conhecer o mundo.
A Escola da Margarida é tão bonita porque tem crianças lindas e espertas que ajudam a simplicidade das coisas boas da vida.
E os outros meninos, das outras escolas, querem conhecer a Margarida, a menina que tem uma escola tão boa e especial.
Talvez um dia a Margarida vos mostre a sua escolinha ou vos escreva a contar o que lá acontece…

Este texto foi dedicado e oferecido à minha filha Margarida que tem 6 anos, pelo Paulo Afonso.
A Margarida tem a felicidade de estar uma escola boa, com espaço para brincar. Por sorte tem também uma professora interessada e que a tem ajudado a descobrir o mundo da escrita, da matemática...
E como gosta de escrever (anda sempre com um caderno e uma caneta) resolveu responder ao pedido do Paulo e explicou o que se passa na escola dela.

Na escola eu faço muitas coisas e também aprendo muitas letras. Já aprendi muitas letras.
Na escola eu já aprendi os números até 11 mas sei os números até 100 na matemática. Eu gosto da matemática.
Na escola eu e os meus amigos falamos do estudo do meio e do tempo.
Na escola eu no recreio salto à corda e com as minhas amigas elas seguram na corda.
Na escola 6 eu tenho uma professora que se chama Verónica e também outras professoras.
Eu gosto muito da escola.
A minha professora é boa porque me ensina muitas coisas.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Bons costumes

Foto de Kadir Barcin

O que são, afinal, bons costumes? Moral e bons costumes, uma expressão tão antiga e tão vaga que é quase impossível que duas pessoas diferentes tenham a mesma opinião. Bom, talvez esteja a exagerar. Se calhar no mesmo país pode haver uma ideia geral do que são bons costumes. O mesmo já não passa se analisarmos os bons costumes ao nível da aldeia global em que vivemos.
O que, para nós portugueses, é considerado um bom costume, para outros povos pode ser uma ofensa. Um exemplo pouco conhecido. Em Portugal, é aceite que uma viúva volte a casar. Na Índia já não é assim (em muitos casos a viúva suicida-se, ou é forçada a suicidar-se, logo que o marido morre, por norma na pira funerária). Na Índia ainda existe o sistema de “castas”, que defende que os homens não são todos iguais, em Portugal a teoria é que somos todos iguais.
O código civil português diz que os bons costumes são “um conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam como contrários a imoralidade ou indecoro social”. Agora eu pergunto. Quem determina essas regras? A imoralidade pode ser um conceito subjectivo, uma vez que depende da formação pessoal, religiosa e social de cada um.
Os católicos acham a poligamia imoral e contrária aos bons costumes. Para o islão a poligamia é aceite, faz parte da sua cultura e é socialmente aceite.
A homossexualidade é outro caso. É imoral para quem? Depende das preferências sexuais de cada um e a sociedade não pode nem deve criticar a sua existência, porque estaria a violar o direito à privacidade que cada um de nós tem. Claro que não estamos a falar de demonstrações públicas exageradas, com as quais não concordo, seja qual for a constituição do casal.
Conheço dois casos, de dois casais, em que a mulher é mais velha que o homem. Num caso ele tem 42 e ela 50, noutro ele tem 25 e ela 41. Tem tido problemas com as famílias dum lado e doutro. Sabem porquê? Porque estas relações são contrárias aos bons costumes. Porque é socialmente aceite esta diferença de idades se o homem for o mais velho, mas é criticado quando a mulher é mais velha.
Não vejo qual o problema, nem da homossexualidade nem dos casos em que os homens são mais novos. Estamos, obviamente, a falar de seres humanos, adultos, com capacidade de decisão. Desde que exista amor porque é que a sociedade os condena levando muitas vezes a que as pessoas escondam o que sentem, e se sintam mal com as suas opções pessoais? Será que cabe à sociedade este papel?
Estes exemplos, e não passam disso mesmo, de exemplos mostram o quanto pode ser contraditória a expressão “bons costumes”. Muito provavelmente serei criticada pela escolha, mas não importa.
Obviamente que a nossa liberdade termina onde começa a dos outros. Se determinada acção violar este princípio que considero fundamental, então sim, para mim é contrária aos bons costumes e não pode ser socialmente aceite. Agora se não o fizer... porque é que há-de ser contrária aos bons costumes?
Nota final - Não quero com este texto incitar ao desrespeito pelas normas sociais. O ser humano é um ser social que deve obedecer a determinadas normas, que aceito e defendo. Mas, no meu entender, essas normas não devem impor comportamentos que apenas afectam o próprio como acontece nos exemplos que apresento e em tantos outros que podia indicar.

terça-feira, 18 de março de 2008

É uma girafa!

Foto de Win Ipenburg


Estou certo de não errar, ao afirmar que todos nós, a sós ou acompanhados, já nos detivemos a olhar as nuvens e a decifrar imagens, que as suas mais variadas formas nos induzem. São momentos de nariz no ar, pés no chão e cabeça nas nuvens. Viramos nuvens de carne e osso. Parece uma girafa, penso eu, feliz com a minha definição da nuvem à minha esquerda, só uma girafa de pescoço muito comprido consegue chegar com a cabeça às nuvens. Vá lá, não se riam. Até aposto que para vocês a mesma nuvem parece um anjo. Mas não é, eu, é que tenho razão, é uma girafa. Há sempre um ou outro no deserto imaginativo, que por mais que olhe, só consegue ver uma nuvem. Outros só para contrariar dizem que parece um elefante. Eu ainda sou capaz de aceitar que pareça um camelo, sempre é mais parecido com uma girafa. Não acham? Pois, eu logo vi, querem contrariar-me a todo o custo. Mas eu não me importo, sorrio enquanto glorifico o meu pensamento: É uma girafa!

Fico danado por não entenderem, que me dá muito jeito para escrever este texto, que a nuvem seja uma girafa. Seja lá como for defendo-me teimosamente, com unhas e dentes. É uma girafa! Por mais que insistam, não aceito outra imagem literária para a minha nuvem. Bem sei que muitos gostavam mais que eu fosse óbvio, previsível, que acatasse sem contrapor as coisas do senso comum. Uma sociedade formatada por igual é que lhes dava jeito. Onde ao olhar as nuvens, se vissem apenas nuvens. Sem mais. Para quê perder tempo a olhar as nuvens? Nuvens são nuvens. Dizem-me. Mas eu divirto-me a enganá-los. Tantas vezes lhes digo sim com a boca e não com o pensamento. (É uma girafa!) A minha alma parte-se a rir, enquanto eu engano descaradamente, uma plateia de cretinos e espertos. Há sempre um ou outro manhoso, de falinhas mansas a querer tira-me a cabeça das nuvens. Chegam até a louvar-me como ser humano, vejam lá bem. Querem comédia? Está bem, eu alinho. (Mas é uma girafa!)

Se lhes der jeito eu até sou capaz de fazer de fantasma, só que depois assombro-os e eles detestam. Fantasma até é uma boa imagem para uma nuvem. Rio-me tanto por dentro que se me assomam as lágrimas aos olhos. Eles ficam todos contentes, pensam que me fizeram chorar de tristeza. Eh! eh! eh! eh!... Mas eu estou tão feliz, comigo e com a minha nuvem. O que eles não sabem, nem nunca saberão, é que nas minhas observações desligadas da lógica, vou descobrindo verdades, ainda que feitas de imagens literárias, nem por isso deixam de ser verdades. Eu sou feito de pedaços de vida e fantasia. Cada um com a sua realidade, mas de modo algum hipotequem as vossas fantasias, por mais sedutora que seja a oferta que vos fizerem. Hipotecar a nossa fantasia, é como estender obedientemente, os braços para as algemas.

Ah! Não se esqueçam.

É uma girafa!!!

Texto de António Paiva.

Recomendo vivamente que visitem o blogue dele, http://dos-meuslivros.blogspot.com/ e que fiquem a conhecer a fabulosa experiência que o António teve ao fazer "Uma viagem com livros".

domingo, 16 de março de 2008

Um passeio por Lisboa

Foto de Dias dos Reis

No outro dia, por razões profissionais, sai do meu local de trabalho, algures nas Avenidas Novas e fui até ao Bairro Alto acompanhada de uma amiga que trabalha comigo e que também vive na Margem Sul do Tejo.
Quando chegamos ao jardim de S Pedro de Alcântara (ao cimo do elevador da Glória) podemos ver Lisboa de cima, em todo o seu esplendor. Estava um dia propício, nem muito solarengo nem muito cinzento. Teria dado uma foto linda. Olhei para a minha amiga e percebi, pelo seu ar espantado, que ela nunca ali tinha estado. No decorrer da conversa percebi que nem ali, nem em mais de metade de Lisboa... apesar trabalhar na cidade há quase 17 anos.
Eu, apesar de ter sempre trabalhado na mesma zona, conheço relativamente bem o resto da cidade de Lisboa. A Baixa, Alfama e a zona do Príncipe Real são as zonas que conheço melhor. Depois conheço quase toda a cidade de vista. De turista.
Os turistas pagam para vir conhecer a nossa cidade, e nós, que passamos por ela todos os dias não a conhecemos. Mas, quem aqui trabalha ou vive, paga para ir conhecer outras cidades. Não se sintam culpados. Quem vive nas outras cidades também não as conhece. Pelas mesmas razões que nós.
A vida agitada que levamos, a correria desde que nos levantamos até que nos deitamos não nos deixa tempo para visitarmos as cidades onde vivemos ou trabalhamos. Nem para estar com os amigos tantas vezes quantas desejaríamos. Nem com a família. Há quanto tempo não paramos num café ou numa esplanada a beber um café ou um refresco com um grupo de amigos, sem olhar para o relógio porque temos um compromisso logo a seguir?
Hoje a nossa vida é um contra relógio constante. A sociedade moderna é escrava do tempo. Sobram coisas para fazer depois de acabar o dia. E, por mais que se saiba que assim é, não fazemos nada para mudar. Antes arranjamos ainda mais coisas para fazer.
Tenho tentado, junto com um grupo de amigos, contrapor esta tendência. Uma vez por mês escolhemos um local diferente para passarmos o dia ou a tarde. Sem relógios, ficamos a conhecer um sítio diferente e, acima de tudo, é um dia que estamos juntos. Pode parecer pouco... mas tem sido bastante gratificante. Se calhar, se fizerem um esforço para o fazer, mesmo que seja só em família, acreditem que se vão sentir bastante bem.

sábado, 15 de março de 2008

Morte na escola

À memória de João Rui Barata Aniceto


Chamava-se João e tinha um sorriso fantástico.
Era o filho de sonho para qualquer pai e mãe.
Era o estudante que todos os professores sonham ter, pela inteligência e pelo primor das suas atitudes e comportamentos.
Era o melhor amigo de Todos.
Um apaixonado pela música.
Um jovem bem formado, educado e reflexo dos valores irrepreensíveis transmitidos pelos pais.
Estava na última aula de educação física do período, alegre e divertido, como sempre o conheci e disse à professora: “Estou mal disposto Professora”. E caiu.
O que se seguiu eleva ao expoente máximo a luta contra o desespero.
Eleva ao mais alto sentimento de impotência o darmos tudo de nós e sentimos que a vida se esvai aos poucos a cada minuto que passa.
Passam-se 30 minutos e o socorro não chega e o desespero aumenta. Tentamos em vão a reanimação cardíaca, sempre, sempre sem parar até à exaustão.
A escola pára.
O desespero e angústia cresce e cresce. E a vida perece.
Chamava-se João.
Partiu ontem e com ele leva a dor das centenas de colegas e professores;
Uma escola que chora esta morte.
O Montijo está de luto.
Mergulhado na dor.
Numa mágoa sem igual.
Com a revolta de jamais compreendermos a razão pela qual o INEM demorou 30 minutos (TRINTA MINUTOS!!!!!!) para accionar o socorro quando o CODU (Centro Operacional de Doentes Urgentes) sabia que estava um jovem de 14 anos em paragem cardiorrespiratória… E pior! Hoje vem o INEM a público reconhecer a demora porque ontem, dia 13 de Março, receberam muitas chamadas…
E assim se foi uma Vida!!!
Chamava-se João e partiu.
Estás nos nossos corações meu querido.

Descansa em paz meu Anjo.

Este relato é feito na primeira pessoa pela Fly do blogue http://sarrabeca.blog.com/, uma das professoras que acompanhou o João nos seus últimos minutos, e é uma homenagem ao João, que, com apenas 14 anos faleceu de forma abrupta e sem assistência por quem de direito. Resta a parca consolação de saber que estava acompanhado por colegas e professores que gostavam dele. E que não desistiram de o tentar salvar.
Como mãe associo-me a esta singela homenagem ao João.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O outro lado do astro


Foto de Emma Gedge

Quando te conheci, naquele fim de tarde, fiquei logo preso aos teus olhos. Naquele momento soube que era contigo que queria passar o resto dos dias.
A nossa amizade, a minha paixão, foi sendo alimentada pelo tempo que passávamos juntos. Estar contigo era tudo o que eu desejava. O teu riso contagiava-me. Eu, que nunca soube o que era rir, aprendi a fazê-lo. Contigo. Contigo aprendi a brincar, a rir, a confiar… Queria ter-te, queria que fosses minha, como eu já era teu.
Partilhei contigo segredos que nunca teria contado a mais ninguém. Confiava cegamente em ti. Como tu confiavas em mim. Havia apenas uma coisa que nunca te poderia contar. Um erro que tinha cometido uns meses após nos conhecermos e que eu sabia que nos iria afastar. Não queria que o soubesses. Fui egoísta. Já que não podia ficar contigo para sempre, ao menos que ficasses ao meu lado até que não o pudesse esconder mais.
Sei que te enganei. Sei o quanto te magoei. Quando te pedi que confiasses em mim chorei tanto, mas tanto. Não porque os outros não confiassem, mas porque sabia que, naquela noite, estava a começar a perder-te. Estava a enganar-te e sabia o quanto irias sofrer quando soubesses.
Quando me confrontaram estavas comigo. Não fui capaz de te olhar nos olhos, aqueles olhos que me tinham conquistado. Sofri. Sofri pela decepção que te causei, sofri por te perder.
Desde esse dia nunca mais consegui sorrir. Perdi tudo o que aprendi contigo. E daria tudo para te voltar a ver. Para te ouvir rir. Queria voltar a olhar-te nos olhos e pedir-te perdão.
Nunca imaginei que umas horas de sexo tivessem esta consequência terrível. De nada adianta dizer-te que não queria, que estava bêbedo e que vi, na outra face, o teu rosto.
Amo o meu filho mais do que tudo, mas jamais amarei outra mulher da forma que te amei. Que te amo...

Dueto com Vera Silva

domingo, 9 de março de 2008

Foto de Joakin Johansson

Se não puderes ser um pinheiro,
No topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo,
Sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o sol,
Sê uma estrela.

Não é pelo tamanho que terás êxito
Ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

Pablo Neruda

quinta-feira, 6 de março de 2008

Incessantemente

Foto de Trish vandenBerg


Desfolha as pétalas do meu corpo
sorve o néctar desta mescla,
da lonjura que nos separa
nos espinhos carentes de saudade
...calo o frio...

(como amantes ébrios)

Perdemo-nos em cartas
como dois adolescentes famintos,
em busca da puberdade
ávidos de um afago
...calo o ardor...

(corro descalça no imaginário dos teus braços)

Não demores meu amado...
Lembras-te do nosso primeiro encontro?
é lá que te espero incessantemente
como da primeira vez...

Dueto com Conceição Bernardino

terça-feira, 4 de março de 2008

O astro

Foto de Ada Ipenburg

Passaram alguns anos desde a última vez que nos vimos e as saudades teimam em não me deixar.
Fomos amigos, confidentes, quase amantes. Amava-te sem que o soubesse. Sem que tu soubesses.
Recordo agora que estavas presente em todos os momentos, desde que me levantava, quantas vezes ao pé de ti, até que nos voltávamos a deitar.
Confiava tanto em ti como em mim e era recíproco. Nenhum de nós seria capaz de prejudicar o outro. Nenhum de nós ousaria sequer magoar o outro, fosse como fosse, e eu acreditava piamente nisso.
Recordo, com amargura, tristeza e também alguma raiva, a noite em que este meu mundo se começou a desmoronar, em que o meu astro começou a perder a sua luz e o seu brilho intenso. Nessa noite pediste-me que acreditasse em ti, já que mais ninguém o tinha feito. E eu, cega, confiei, acreditei, sem duvidar sequer por um segundo da tua palavra. Bastava-me a tua voz, o teu olhar, que tanta segurança me davam.
Todos me avisaram que não era assim, que me estavas a enganar. Mas foi em ti que acreditei, porque eras tu o meu sol, a razão do meu sorriso.
Quando te confrontaram com a verdade, quando te fizeram confessar o que se estava a passar, eu estava lá. E a minha vontade foi desaparecer, morrer.
Não podia ser verdade! Não podia! Tu nunca me enganarias, jamais me mentirias... Só que tu confirmaste o que eu não queria ouvir, confessaste a verdade nua e crua que me dilacerou a alma.
Tu, que sempre me tinhas olhado nos olhos, não foste capaz de o fazer. Baixaste a cabeça e pediste-me desculpa...
Será que fazias alguma ideia do que me estavas a fazer? Será que fazes alguma ideia como, passados estes anos, ainda me sinto? Será que tinhas consciência de que me estavas a tatuar, naquele momento, a alma com um sofrimento irreparável?
Nesse dia perdi o amigo, o confidente, o companheiro… e perdi parte de mim… que nunca mais recuperei…

Dueto com a Vera Silva

Nota das autoras – o mistério subjacente a esta história poderá vir a ser desvendado. Quem sabe se não estarão a ler apenas o início... e quem sabe como acabará...

segunda-feira, 3 de março de 2008

Procissão

Foto de Luiz Rodrigo Cerqueira Sousa

Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.

Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!

Com o calor, o Prior vai aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.

Letra de António Lopes Ribeiro
Música de João Villaret

sábado, 1 de março de 2008

Ser poeta

Foto de Anderson Christian

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca, «Charneca em Flor», in «Poesia Completa»

Dedicado ao poeta Luís F, meu amigo de ontem, de hoje e de amanhã, e que admiro imenso como poeta e como pessoa.