domingo, 5 de outubro de 2008

Arte poética com melancolia

Foto de Jef Van den Houte

Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro palavras de dentro do que penso e do que faço, como se elas pudessem viver aí, peixes verbais no aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem da terra, nem trazem consigo o peso da matéria; quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem o mesmo sangue com que se faz viver as emoções, e servem de alimento a outros que as lêem como se, nelas, estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me das mãos como areia; tento apanhar esses restos de tempo, de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É então que surges: o teu corpo, que se confunde com o das palavras que te descrevem, hesita numa das entradas do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens inúteis que me separaram de ti.

Nuno Júdice

4 comentários:

  1. Nuno... que grande momento aqui encontro.

    Parabéns pelo texto, de facto, de grande beleza.

    Com amizade
    Luis

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  2. Nuno Júdice no livro "Arte poética com Melancolia"...
    E que belo momento nos deixaste aqui, deste grande autor!

    Beijinhos

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  3. SUBLIME a escrita de Nuno Júdice!

    Obrigada por este momento aprazível.

    Um beijinho*

    Fanny

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Por falta de tempo nem sempre poderei retribuir a sua visita ao meu espaço, mas agradeço-a desde já.